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Pontos de vista

O Brasil e as quatro telas

29/08/2025
Q

Saíram os últimos números do IBGE sobre o uso de internet e telas no Brasil. Geralmente, dentro das empresas, esses dados são lidos como bússola de investimento em mídia: para onde as pessoas olham, onde a atenção se concentra, e portanto onde a publicidade deve estar.

Esse raciocínio é válido, mas perde a camada mais profunda: as telas não são apenas superfícies de mídia. São dispositivos de poder e transformação social. Entender como elas entram e saem de cena é aprender sobre desigualdade, coletividade, formação e até o futuro do trabalho.

Os tamanhos que moldam a vida

Da invenção do cinema ao smartphone, quatro tamanhos de tela se tornaram parte da vida social, cada um trazendo um jeito de ver, sentir e se relacionar com o mundo.

  • A telona do cinema: segundo a Ancine, hoje temos o maior número histórico de salas no país, são 3.509, número maior que o de 2019, anterior a pandemia. Este crescimento, que ainda não faz da telona um meio massivo, representa o lugar que o cinema ocupa hoje na sociedade: uma experiência simbólica, quase ritualística, é um programa cultural de exceção, lembrado como espaço de formação, de imersão coletiva, de magia social.
  • A TV: reinou no século passado como altar doméstico, centralizando a vida familiar em torno de narrativas comuns. Foi acusada de padronizar o pensamento e de massificar comportamentos. Agora, com a internet, se reinventa: deixou de ser um meio passivo e virou tela de escolha, controle e até segurança (pais preferem ver o que os filhos assistem na tela grande). O dado que vira essa chave é que em 2024, pela primeira vez, mais da metade dos brasileiros acessaram a internet pela TV, 53,5%. Em 2016 o acesso pela TV era de apenas 11,3% (dados do IBGE).
  • O computador: chegou pela porta do trabalho e se firmou como ferramenta de produção e de formação. No entanto, ele nunca foi uma tela de todos e, nos dados mais recentes, se consolidou como marcador de privilégios. A TIC Domicílios 2023 mostra que 40% dos brasileiros usaram computador nos 3 meses anteriores, mas a concentração é brutal: 91% na classe A vs. 40% na classe C e 12% nas classes DE. Em paralelo, o IBGE mostra que a proporção de pessoas que acessam a internet via microcomputador caiu de 63,2% (2016) para 33,4% (2024).
  • O celular: a menor tela, mas a mais poderosa em penetração. Desde lançamento do iPhone em 2007, se espalhou como fogo. Em 2024, 98,8% dos usuários de internet acessaram pelo celular. Ele se tornou o novo símbolo da cultura de massa: ora herói da inclusão, ora vilão da precarização — afinal, nem tudo cabe na telinha.

O que está mudando

Entre essas telas, o que vemos é uma dança de funções:

  • Cinema vira memória cultural resistente, as vezes mais simbólica do que prática.
  • TV ganha nova força com a internet, transformando individualidade em experiência coletiva.
  • Celular consolida seu lugar como ferramenta de todos, em todos os momentos.
  • Computador cai, se concentra ainda mais e sua ausência preocupa.

O computador não é só mais uma tela: é a que garante ergonomia, profundidade, foco. É nela que estudar, analisar dados ou escrever um texto longo faz sentido. Substituir isso por uma telinha é empobrecer as condições de aprendizado e de trabalho.

Os dados do IBGE sobre estudantes reforçam a desigualdade: 72,9% na rede privada acessa internet pelo computador vs. 29,2% na rede pública.

O privilégio de ter todas as telas

Hoje, o verdadeiro privilégio não é ter internet, mas é ter todas as telas, é poder escolher a que atende melhor cada necessidade.

  • Ir ao cinema como programa cultural.
  • Usar a TV conectada como espaço coletivo e controlado.
  • Ter o celular como extensão constante da vida.
  • E o computador como meio de produção, foco e aprendizado.

Quem pode transitar entre esses quatro ambientes tem acesso a experiências mais completas e produtivas. Quem não pode, fica preso a recortes precarizados do digital.

E as empresas nisso tudo?

Na Inesplorato, temos visto áreas de entrada de jovens profissionais de baixa renda (como vendas) tratarem o computador como prêmio. Ele se tornou uma peça escassa, que gera competição interna e desigualdade, quando deveria ser ferramenta básica para todos.
Se o jovem trabalhador não sabe usar o computador, temos um problema estrutural. Os cursos de computação dos anos 1990, que pareciam coisa do passado, talvez precisem ser reinventados, agora com outra linguagem, para garantir uma digitalização de qualidade, não apenas de acesso.

Perguntas que precisam entrar na mesa de decisão

  • Quem tem acesso a computadores de qualidade no seu ambiente de trabalho?
  • Quem não tem? Que efeitos negativos isso gera? A telinha sempre dá conta do recado?
  • Quais desigualdades escondidas surgem da ausência dessa tela?
  • Diante dos avanços da IA, como a possibilidade de trabalhar em telas maiores – com ergonomia e concentração – pode aumentar a eficiência de uns e distanciar ainda mais os que não têm acesso?

As telas são dispositivos de poder. Temos que olhar para elas não só como espaços de mídia, mas como fatores estruturais de inclusão, desigualdade e transformação social e de mercado!

Debora Emm

Sócia Fundadora da Inesplorato

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