Publicado em 28/09/2022
As expressões “copo meio cheio” e “copo meio vazio” geralmente são utilizadas para falar de otimismo ou pessimismo, de como olhamos para as coisas da vida. Como colecionamos perspectivas e formas de lidar diante das situações que nos encontram, podemos dizer que temos em nossas mãos a opção de ver as coisas por um ângulo mais positivo ou negativo. Mas quando olhamos para a forma como o mercado tem se apropriado de algumas ideias, essa expressão pode ganhar outro sentido.
Há uma série de expressões e termos que as empresas vêm utilizando que não são necessariamente a melhor maneira de significar as coisas. O problema não são as expressões em si, mas sim os dois movimentos que elas representam: esvaziamento de sentidos e enlatamento das experiências.
O papo é complexo e os efeitos são bem concretos. Decisões de negócios e análises sobre a realidade dos consumidores muitas vezes são mediadas por expressões, como “hackeamento”, “disrupção”, “high stakes mindset”, que não encontram reflexo na realidade efetiva e histórica do mercado brasileiro, muito menos ajudam a explicar e conhecer essa realidade. Fala-se tanto dos métodos de Design Thinking, mas pouco sobre os sentidos da Paulistânia ou o papel cultural do sertanejo. Lê-se e publica-se tanto sobre ultra performance, mas pouco sobre gambiarrologia e o lugar da sagacidade criativa do brasileiro. É parte de conhecer o Brasil olhar com cuidado para esses dois movimentos, por isso vamos esmiuçá-los aqui.
Esvaziamento de sentidos
Quando estudamos os problemas do universo da comunicação – por meio do estudo Meia Palavra – falamos um pouco sobre a ilusão que possuímos de que as palavras possuem valor isento. Ora, nenhuma palavra é isenta, pois cada termo carrega um signo e significado. Toda palavra tem uma história e um contexto de sentidos e objetividades no qual ela foi criada e utilizada.
Um exemplo que temos visto nos últimos tempos é o uso do termo “curadoria”. Veja, curadoria é um método que conecta pessoas com um universo que não necessariamente elas conseguem se relacionar – é um modo de “facilitar” uma relação, cuidando das dificuldades envolvidas no processo. Para tanto, há método e não apenas a ação de selecionar ou de filtrar, como o termo é comumente associado.
Quando esvaziada de sentido, a palavra curadoria assume o papel inexpressivo de “filtro”, e, dessa maneira, todo mundo se torna “curador” de alguma coisa. Existe, por certo, um glamour em torno desse termo – glamour este que bebe do universo da arte e que muito se relaciona com questões de classe (mas isso é assunto para outro texto…) . Ainda assim, é um esvaziamento quando tomamos “curadoria” simplesmente como uma “seleção de coisas”.
Outra palavrinha bastante comum no mercado é a “etnografia”, usada para se referir a “ir e visitar no campo o espaço do consumidor”. Esse uso esvazia uma metodologia própria da ciência social e antropológica rica e importantíssima no desenvolvimento de estudos culturais – que inclusive exige grande rigor teórico e metodologias consistentes -, passando, pelo menos, pelas obras magistrais de Franz Boas, Margaret Mead ou Claude Lévi-Strauss. Ir à casa de alguém por algumas horas pode ser chamado até de “visita guiada”, mas definitivamente não é etnografia!
O problema do esvaziamento de sentidos é que se perde o potencial de impacto que uma palavra possui, ao longo de como ela foi utilizada e apropriada em sua história, e se aceita uma versão fechada e limitada, muitas vezes rasa. É o “copo meio vazio”: ele contém algo ali, mas está esvaziado de um sentido pleno. Perde-se a dimensão das palavras, e a profundidade (tão escassa em tempos de FOMO) se esvai como o líquido que falta a esse copo.
Enlatamento das experiências
Outro problema é o “copo meio cheio”, ou o que podemos chamar de enlatamento das experiências. Estou tomando o termo emprestado do grande sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos. Nos anos 1950, ele escreveu um trabalho importantíssimo para pensar criticamente como se poderia fazer uma sociologia originalmente brasileira. Ali, destinou parte de sua explicação para falar da “sociologia enlatada”: uma transposição de categorias e conceitos da realidade externa ao Brasil de forma pronta, sem qualquer adequação ou reflexão contextual maior.
No mercado, essa importação acrítica é muito comum. A maneira como “millennials”, “Z” e outras chamadas “gerações” vêm sendo utilizadas nas empresas é um exemplo tácito de enlatamento. E quando isso é feito, aceita-se o copo como cheio, quando na verdade ele continua vazio.
Entre as duas perspectivas, o problema da falta se coloca. Falta profundidade no uso de conceitos, falta crítica para a transposição de ideias entre diferentes realidades. A sensação de falta é um grande problema daquele que não se reconhece e vê na sua riqueza de repertório e experiências a sua própria medida para as coisas. Por isso, reflita: você está enchendo seu copo de sentido e localidade? O mercado brasileiro tem sede!
Até mais,
Curador de Conhecimento
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